quarta-feira, 20 de abril de 2016

Mircalla

Escrevi este texto há um tempo... bastante tempo, na verdade... com o tempo, o original se perdeu e nunca mais encontrei... Eu tinha um carinho especial porque foi uma das minhas primeiras tentativas de escrever. Dia desses, pensei comigo mesma, eu ainda lembro da história - em linhas gerais - vou tentar reescrever... e saiu isto, hoje me soa meio pueril e bastante tosco, mas ainda tenho carinho. Julguem-me!   :-p


Mircalla


O cheiro de mofo incomodou seu nariz, provocando uma sensação desagradável, lembranças mórbidas de putrefação, decadência e morte. Sentia a pele gelada e pequenos arrepios causava um formigamento difícil ignorar. Abrindo os olhos para a escuridão total, ela prendeu a respiração. Onde estava? Esticou um braço, tateando à sua frente, tentando ter alguma noção do que a rodeava... e só encontrou o vazio.
Assustada, levantou-se, sentindo a cabeça girar. Era noite, só isto era evidente. E ela não estava em casa. Na escuridão, sua respiração ruidosa devido ao medo, ecoavam como gritos, enquanto ela, semi agachada, percorria o espaço, tateando lentamente na tentativa de descobrir onde estava. Suas mãos se depararam com alguns objetos de madeira, frios, úmidos, esfarelentos. Seus pés chafurdaram em poças e mais de uma vez, imaginou ter pisado em insetos, insetos gosmentos, cascudos. Melhor não pensar nisto.
Sua exploração não foi muito longe, o espaço era limitado por paredes, pelos quatro lados, duas das quais, pareciam acomodar grandes compartimentos, alguns abertos, alguns com portas concretadas, e com anéis metálicos que ela levou um grande tempo para distinguir. O lugar era escuro, úmido e fedia muito. Aquele cheiro a deixava zonza. Pelos cantos, conseguiu tatear os contornos de grandes caixas de madeira, algumas com tampas presas, outras soltas, que se ergueram facilmente a seu toque.
Confusa, agachou-se no canto oposto, o mais desatulhado que encontrou, e ergueu os olhos para um céu invisível. Seu estômago doía, contraindo-se em dolorosas câimbras, que a impediam de ficar em posição totalmente reta. Aquele cheiro lhe dava engulhos, nunca gostara do cheiro de umidade, da textura do mofo, lhe trazia maus pensamentos, remetiam a podridão, abandono, desespero. Seu cérebro, superexcitado, parecia se debater inutilmente entre as questões vitais daquele momento: Onde estava? Como viera parar ali? Como sairia?
Tentanto ignorar o efeito que aquele ar fétido tinha sobre seu organismo, tentou acalmar a si mesma, fechando os olhos, trocando uma escuridão desconhecida por outra, conhecida... e começou a respirar lenta e profundamente. Uma espécie de clareza tomou conta de sua mente e, pelo menos, os arrepios diminuíram até quase parar. De olhos fechados, foi inundada de súbita paz. Ao mesmo tempo, pelo poder da memória, sentiu em seu nariz o suave cheiro de flores do campo, e a textura macia de um tecido rendado raspando sobre seu rosto. Estava deitada, sentia as restrições de laterais que contornavam seu corpo. Lembra-se de ter tentado mover os pés, mas pareciam amarrados. As mãos, jaziam cruzadas sobre o peito, pacificamente, também fora incapaz de movê-las. Curioso, estava consciente, sentia, pensava, mas não conseguia se mexer. Estaria em uma espécie de brincadeira? Um sonho? Cânticos suaves entravam pelos seus ouvidos e sentiu-se sendo acarinhada, por sobre o tecido que a cobria, como num sono tranquilo. Por entre pálpebras que pareciam pesar toneladas, impossíveis de serem erguidas, sentia a luz tentando se infiltrar, mas, de forma um tanto vaga, relaxou os membros e deixou o cérebro viajar sem controle... certamente era um sonho. Um sonho esquisito, uma experiência extra-sensorial. Em meio aos cânticos, de repente ouviu gritos, choro, um som do mais puro desespero. Pensou reconhecer aquela voz, mas não conseguia se mexer para ver quem era. Algo líquido pingou em seu rosto, quente e vivo. Não pôde fazer nada. Não gostou do som daquele desespero. Tornava ruim, um sonho que de outra forma era bom. Aquela paz... jamais tinha sentido aquilo antes. Lembra-se de ter pensado que não se incomodaria nem um pouco de passar o resto da eternidade mergulhada naquela sensação. Passou-se um tempo, impossível de ser mensurado. Lembra-se de ter apagado, despertando subitamente ao sentir-se em movimento. A insinuação de luz fora cortada, sentiu que um objeto grande obliterava a luz externa, até cortá-la por total, os cânticos foram abafados, o cheiro das flores ficou, primeiramente muito mais intenso, e não demoraram a cheirar mal. Com um grito intenso que só soou dentro de sua prória mente, ela apagou.
E acordou ali. Seja onde for este “ali”.
Onde estava?
Abriu os olhos, lentamente, esperando que tivesse havido uma mudança de ambientação enquanto os mantivera fechados. Mas não, claro. O que estava pensando?
Subitamente, um raio de luz prateado refletiu-se no chão à sua frente, vindo do alto. Rapidamente elevou o olhar, e viu que alguns metros acima, havia uma espécie de pequena janela, por onde se infiltrava o que provavelmente era a luz da lua. Aquele feixe de luz fazia pouco para revelar seus arredores, mas ao menos, era algo ao que se apegar. Se havia uma janela, havia uma saída. Levantou-se e viu que, mesmo em pé, a distância até a saída era considerável. Não era possível escalar a parede lisa, tentou apoiar-se em algumas reentrâncias, e lamentavelmente, após alguns segundos, caiu de costas, no chão empoçado. Ficou deitada ali, sem forças e sem ideias, até que sentiu algo rastejando pelo seu braço. Com um impulso cheio de nojo, abanou o braço e deu um grito que soou alto como um tiro no espaço enclausurado. As contrações em seu estômago ficavam cada vez mais fortes e ela se encolheu para vomitar. Não pôde conter o jorro quente e ácido de bile que lhe subiu pela garganta, mas pouco saiu. Sua tontura se intensificou e, por um momento, pensou em desistir. Somente o pensamento do que poderia haver naquela escuridão, à sua espreita, algum terror desconhecido e indescritível é que a fez pôr-se em movimento de novo.
Lembrou-se das caixas e das madeiras jogadas a um canto daquele antro e pôs-se a juntá-las, como forma de ter o que escalar para vencer a considerável distância que havia entre o chão onde estava e janelinha que parecia ser sua única rota de fuga. Amontoou-as de qualquer jeito, surpreendendo-se com o peso de algumas, e a leveza de outras, e começou a escalar, pisando de qualquer jeito. Seu pé afundou, quebrando uma das tampas das caixas e ela sentiu-se caindo, afundando no que quer la que fosse que aquela caixa encerrava, e morrendo de medo, começou a se debater, temendo que fossem animais, talvez peçonhentos. Ante a ausência de movimento, viu que, seja lá o que a grande caixa encerrasse, não era nada vivo, tateou o conteúdo, estremecendo ao sentir com a ponta dos dedos, restos esfarelentos de trapos de tecidos, e o contorno do que pareciam ossos. Quando seus dedos se afundaram em órbitas vazias e tatearam o contorno arredondado de um crânio, ela abafou um grito e caiu de novo.
Caiu mal. Em cima de sua perna, dolorosamente contorcida. Incapaz de controlar o choro, achou que ia morrer. Pois sabia agora onde estava. De algma forma estava em um túmulo, cercada pelos que foram enterrados ali antes dela. Agora a sua lembrança daqueles momentos de “paz” faziam sentido. Era seu velório! Estava morta? Como pode ser? Sentia-se tão viva, movia-se, pensava, gritava, vomitava... isso não podia ser a morte. Não era. A morte eram aqueles ossos inertes dentro daquele resto de caixão. Ela estava viva. Viva.
Retirando força daquele pensamento, tornou a escalar o amontoado de caixões (não havia motivos para continuar chamando-os de caixas agora), e cuidadosamente apoiando-se na parede coberta de limo, conseguiu chegar à janelinha e olhar para fora. Estava muito suja e mostrava muito pouco. O vidro, grosso e empoeirado, era emoldurado por ferro entalhado, em delicados rococós, mas para ela, tinham gosto de morte. Empurrou e nada da janela abrir. Desesperada, esmurrou o vidro algumas vezes, até conseguir rachá-lo, continuou a bater até conseguir uma abertura mínima, e quando consegiu passar a mãos, tateou as laterais externas da janelinha, em busca de um ferrolho, um modo de abri-la. Conseguiu e quase chorou de novo ao erguer o corpo para passar pela portinhola e cair no mundo real de novo.
Era noite, de fato. A escuridão externa também era intensa. Nuvens cobriam a lua e uma garoa triste cobria o mundo de inúmeras gotículas que brilhavam fracamente, como diamantes sujos.
O túmulo de onde saiu não tinha identificação, ela não reconheceu o cemitério onde estava. Parecia um labirinto. O labirinto mais triste do mundo. Puxando a capa que usava mais para junto de seu corpo, ergueu o rosto para sentir a garoa lavar suas lágrimas. Jamais se sentira tão sozinha e desamparada. Escapara da escuridão da morte, mas o mundo exterior não lhe parecia assim tão vivo. Seu corpo ainda doía, seu estômago parecia em chamas. Ela não sabia para onde ir. Ou o que fazer. Parecia necessitar algo, mas não sabia o que.
Pôs-se a vagar, não podia mais ficar parada. Uma hora a luz viria. Teria de amanhecer em algum momento.
Ao fazer uma curva em uma das infinitas vias de túmulos desconhecidos, alguns ornados, imensos, outros simplórios, semi-destruídos, ela ouviu um som que imediatamente captou sua atenção.
Parecia um soluço.
E vinha de algum lugar à sua esquerda.
Curiosa, pôs-se a ir naquela direção. À distância, viu que havia um homem debruçado em um dos túmulos menos ornados. Ele trazia uma garrafa na mão e soluçava abertamente. A dor que emanava dele em ondas, atingiu-a como uma labareda em meio a ao frio que a rodeava, o que a fez cambalear um pouco. Aqueles cabelos escuros dele, pareciam de alguma forma, familiares. Evocavam mais uma sensação, que uma lembrança, propriamente dita. Sensação de dedos se entremeando a fios espessos e rebeldes.
Indecisa em se aproximar ou não, mas cada vez mais curiosa, observou o rapaz, que vestia uma roupa esquisita, mas ainda bela. Parecia envolto em trevas, só assim podia descrever. Tudo nele era preto, as calças, camisa, casaco e botas. Ele murmurava e bebia, murmurava e bebia. Totalmente perdido em sua dor. Alheio a qualquer presença. Ela devia sair, devia se afastar. Aquela dor era pessoal demais, pertencia só a ele.
Ela deu alguns passos hesitantes na direção dele, incapaz de evitar.
Ele não notou sua aproximação até ela estar bem a sua frente. Erguendo os olhos vidrados na sua direção, ele pareceu – literalmente – ver um fantasma.
– Você... – ele murmurou, empalidecendo, mas ao mesmo tempo, com os olhos a brilhar.
– Eu... quem é você?
– Eu venho aqui há tanto tempo... já não achava mais que iria encontrá-la.
– Como... como sabia que eu estaria aqui?
Mais perto dele, ela olhou a identificação do túmulo sobre o qual o rapaz se debruçara: “Mircalla Nightshade 1875 – 1895”.
Reconheceu o nome. Reconheceu o inferno repetitivo em que vivia desde sua morte. O esquecimento, a recordação e o esquecimento de novo. Seria ele parte disto? Isto já teria acontecido outras vezes? Não sabia, mas a sensação de estar com ele era como estar em casa. Achava que teriam tempo para descobrir. Talvez juntos.
Ao abrir os braços para acolhê-lo, teve a impressão de que, tempo, era algo que ela tinha de sobra.


(ainda em desenvolvimento...)

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