Segue um conto que enviei para participar de um desafio em um fórum do qual participo.
O tema era "Como seria o fim do mundo sob a visão de um zumbi".
:D
A idéia surgiu após um sonho que tive com o início da cena final, do homem torto subindo pelas escadas...
O
HOMEM TORTO
Era
sua terceira tentativa de despertar. A luz intensa feria seus
olhos, e a visão não parecia normal. Como o restante do corpo,
ela também doía. Tudo era dor. Sentia calafrios percorrendo sua
pele, cãibras fortíssimas contraindo seus músculos. Sentia os
ossos como elásticos demasiadamente esticados, unidos por um mísero
fio fino, prestes a se romper à menor pressão. Mas suas entranhas
pareciam pior. A dor que sentia por dentro era insuportável. Era
como se um punho imenso e descontrolado, apertasse, torcesse e então
afrouxasse só para voltar a apertar tudo de novo, em um bolo de dor.
Estômago, pâncreas, fígado, baço, rins, tudo misturado e apertado
numa só pústula latejante.
Com
a mente embotada e enevoada, tentou averiguar onde se encontrava.
Pela luminosidade, era um ambiente externo, e pela falta de conforto,
estava deitado diretamente no chão. A visão embaçada não ajudava.
Via tudo vermelho. A luminosidade era vermelha. O céu era vermelho.
O chão era vermelho. Passou lentamente a mão por sobre o chão que
lhe servia de cama, e tateou por sobre o que lhe pareceu grama.
Alguns metros à frente, havia uma lápide, e nesta, as palavras que
lhe causaram mais arrepios do que poderia suportar: Marina
Lequartier, amada esposa e mãe. Jamais será esquecida.
De súbito, lhe veio à mente sua própria imagem, negociando aquela
placa, escolhendo aquelas palavras com esmero. Um homem alto, magro, altivo, no auge de seus quarenta anos, escolhendo o
que ficaria de registro para a posteridade do ser que um dia lhe
significara tudo. Tentando resumir em poucas e limitadas linhas, a linda
história de amor que vivera com Marina, a que partira tão cedo. A
escuridão tomou conta de tudo novamente, e seus pensamentos voltaram a
embotar.
Inventário
interno: Ok, estava no cemitério da cidade, em frente ao túmulo da
esposa recém-falecida. Ok. Devia ter sofrido um acidente, ou ter se
metido em alguma briga de bar. Ok. Provavelmente estivera bêbado.
Isto explicava sua confusão, suas dores, sua incapacidade de
pensamento.
Lentamente,
lutou para se levantar. Seu corpo parecia a ponto de se despedaçar,
e a visão ainda estava vermelha. Tentou apoiar-se no chão, para
conseguir se elevar, não deu. O máximo que conseguiu foi ficar de
joelhos. Arrastou-se até a sombra de uma árvore próxima,
sentindo-se tonto e enjoado a cada movimento hesitante. Sentou-se com
as costas apoiadas no tronco da árvore e pôs-se a forçar-se para
cima. Deslizando, tentando endireitar a posição, ficar em pé. Suas
pernas eram de gelatina, além disto, tomara consciência de um gosto
horrível na boca. Inenarrável. Indescritível.
Quando
finalmente conseguiu pôr-se em pé, arriscou um passo. Lento, incerto
e claudicante, conseguiu um, depois outro, depois um terceiro. Tentou
respirar fundo, seu nariz estava estranho. Não parecia estar lá.
Todo ele não parecia estar lá, sentia-se um boneco de ventríloquo,
um homem torto, tomando vida pela primeira vez, aprendendo a dar
passos, valer por si.
Pretendendo,
talvez, procurar ajuda médica, caminhou daquela maneira lamentável
para a saída do cemitério, rumo à cidade. O ar estava parado, não
havia vento, não se ouviam ruídos. De trânsito. De carros. De
vendedores. De pássaros. Nada. Pensou que talvez estivesse surdo.
Soltou um gemido rouco que ergueu-se de sua garganta com um novo
sabor de podridão e odor fétido. Ouviu seu ruído incompreensível.
Surdo não estava. Onde estava todo mundo?
A
cada passo que dava, a dor migrava de uma parte de seu corpo para
outra. Quando deitado, ela parecera se dividir igualmente entre
os membros, agora, pareciam ter descido para as pernas. Exceto o nó
nas entranhas, este era constante. Era como uma fome. Um
homem torto com uma fome dos infernos
foi a expressão que lhe veio à mente ao tentar racionalizar sua
situação.
Ao passar pelos portões
do cemitério, percebeu que a situação da cidade não estava
diferente. A vermelhidão de sua visão começava a esmaecer, e
conseguia distinguir melhor ruas, calçadas, árvores. Mas não via
pessoas nem carros. Era como estar em uma cidade fantasma. Era como
sentir-se um fantasma em uma cidade fantasma.
Decidiu tentar chegar a
sua casa. Pelo menos tinha um telefone, poderia buscar ajuda. Estava
longe, mas achava que conseguiria caminhar. O que mais lhe restaria?
Caminhando –
caminhando – caminhando. Parecia estar andando por horas quando
sentiu algo diferente. Pela primeira vez, seu olfato – aquele que
supostamente vinha de seu nariz inoperante – subitamente captou
algo no ar. Um cheiro metálico e pungente, que entrou nariz adentro
e desceu direto para o meio daquele nó apertado em suas tripas.
Imediatamente e sem um segundo pensamento, rumou para a fonte daquele
cheiro. Tentando entender as reações daquele corpo torto que lhe
era totalmente estranho.
Por um momento não
entendeu o que via. Tudo continuava deserto, mas havia um cão ferido
caído no fim do beco. Ele gania e chorava, mas o homem torto não
ouvia nada. Sua visão avermelhou-se ainda mais e focou imediatamente
na poça de sangue que se esvaía da criatura. Aproximou-se
vagarosamente, sem ter inteira consciência do que fazia, e o cão
ergueu para ele olhos suplicantes. O homem ajoelhou-se ao lado do cão
e mergulhou a mão naquele sangue. Imediatamente levou a mão suja de
sangue até a boca, e no momento em que a primeira gota de sangue
chegou à cãibra enovelada em suas entranhas, ele sentiu alívio.
Pela primeira vez desde as horas de seu despertar, a dor foi embora.
Ao provar o sangue da criatura, sua dor sumiu, mas ele pode sentir a
dor do cão, um tipo diferente de dor, uma dor doce, uma dor
distante. Uma dor que curava a outra.
Dali por diante, tudo
aconteceu muito rápido. Algo se apossou dele e quando deu por si
novamente, estava todo sujo de sangue e de pedaços de carne do cão,
de quem restara muito pouco, além do gosto rico e metálico do
sangue em sua boca. Tinha feito o inominável. Além de tomar sangue
da criatura, aqueles pedaços acinzentados próximos da cabeça
aberta, indicavam que lhe tinha devorado o cérebro.
Largou os restos e
voltou a andar. Poucos minutos depois, a dor voltou. Fraca de início,
mas crescente com o passar dos minutos.
Em seu caminho, reparou
as inúmeras casas vazias. Portões trancados. Portas embarricadas
com madeiras e móveis. Cortinas cerradas. Ao passar por uma delas,
viu uma cortina tremular. Uma daquelas cortininhas de porta, como se
alguém estivesse a espiar o movimento (ou a falta de) do lado de
dentro.
Tentou bater a porta,
pedir ajuda, pedir para a pessoa deixá-lo usar um telefone. Mal
percebeu que de sua garganta só saíam gemidos, ruídos, grunhidos,
e que ele parecia mais ameaçador que conciliador. Diante do grito de
“Dê o fora!” e “Saía daqui imediatamente ou vou atirar”
afastou-se o mais rápido que conseguiu com aquele seu passo
claudicante e arrastado, um homem torto correndo por uma rua torta.
Ironicamente conseguiu
pensar: “Que bela figura devo fazer, caminhando por uma cidade
fantasma, arrastando-me fétido, coberto de
sangue e sujo da refeição grotesca que tinha acabado de fazer. É
claro que ninguém vai me ajudar.” Refeição grotesca. E aquela
fome apertando de novo suas entranhas, como um organismo vivo. A
parte consciente de seu cérebro o alertou: logo teria de comer de
novo. O que faria? Não vira mais animais, não vira pessoas. Só
havia ele.
Àquela altura, chegou
em seu bairro. Sua casa não estaria longe. Tudo deserto. Era surreal
sentir-se tão isolado em uma área da cidade antes tão movimentada,
e de onde Marina, sempre quisera “fugir”. Naqueles momentos de
sonhos e planos futuros tresloucados, onde ela evocava o sonho
distante de morar em área rural, viver da terra, no silêncio e na
tranquilidade. A doença que a levara fora rápida, breve, e
permanecera um mistério até mesmo após a necrópsia. Em questão
de dias, sua amada se fora e depois daquilo, ele se lembrava de pouca
coisa, tudo longínquo como em um filme. Bebedeiras entremeadas por breves
períodos de lucidez dolorosa, afogados em mais bebedeiras.
Avistou sua casinha e
tentou correr para lá. Caiu. Mover-se parecia uma novidade ainda.
Com esforço, ergueu-se, e arrastou o pé até a varanda, sem saber o
que faria se a porta estivesse trancada. Não estava. Apesar do
levemente avermelhado de sua visão, o ambiente acolhedor, decorado
amorosamente por Marina, o acolheu como um útero, lembrando-o
vagamente da época em que ele chegava em casa após o trabalho no
laboratório e a encontrava com o garoto, Salomon, no colo, e algo
apetitoso assando no forno. Como era gratificante a sensação de
voltar para casa naquela época. E como aquilo tudo parecia distante
agora.
Arrastou-se até a
cozinha, abriu a geladeira e sem se importar com o que levava à
boca, tentou comer, tentou afogar em comida aquela dor: azeitonas, o
resto de um guisado de carne (sabe-se lá de quando era aquilo),
uvas, cerveja, leite. Tudo tinha gosto de papel. Caíram como uma
bomba naquele nó apertado de dor dentro de si e tudo foi
instantaneamente ejetado em fortes jorros de vômito, no chão
impecável da cozinha do lar de Marina.
Como que para
castigá-lo, a dor foi aumentada à enésima potência, exigindo,
bradando em altos berros dentro de si a exigência por satisfação total. Sangue
vivo, pulsante, cérebro fresco, pensante. Humano. Nada de animais.
Era isto que a dor queria, era isto que teria de lhe dar para ter um
pouco de paz.
Pensou em morrer. Na
gaveta da mesinha de telefone havia um revólver. Salomon ainda era
de colo, e não tinham visto ainda necessidade de escondê-lo em um
local fora de seu alcance. Pegou-o, segurou-a na mão, sentiu seu
peso, verificou o tambor. Carregada. Encostou na têmpora, fechou os
olhos, o vermelho se tornou negro, Marina preencheu tudo. O dedo
pinicou, dançou sobre o gatilho.
De repente, seu olfato
deu sinal de vida novamente. Como acontecera no episódio do cão.
Sua cabeça se voltou imediatamente para a direção de onde vinha o
odor, como se puxada por um cordão invisível. Subiu as escadas,
como um sonâmbulo. Arrastou-se pelos degraus, ainda com a arma na
mão. Passou pelos retratos da família, caprichosamente pendurados
na parede acima do corrimão. Não lhe despertou nada, sua visão
estava vermelho escuro. Aquela besta-fera urrava desenfreadamente
dentro dele, aquela dor ameaçava levá-lo à loucura. Arrastou-se
pelos últimos degraus, como se fosse um animal, um lobo, um tigre.
Seguiu o cheiro e entrou
em um quarto.
O quarto do filho.
Salomon estava ali, no
berço. Quieto. Sozinho. O cheiro de sangue, de vida, de saúde era
tão forte, tão irresistível, que parecia formar um sinal de alvo
na criaturinha no berço.
Aproximou-se lentamente,
dentro de seu cérebro, tentava brigar com aquela besta-fera de
vontades, aquele instinto e impulsos que o fazia desejar matar seu
próprio filho para apaziguar sua dor. Mas era forte demais, era
insuperável.
Os olhos azuis do garoto
se viraram para ele. Ele ergueu as mãozinhas rosadas e gorduchas,
como se dissesse: “Papai”.
Por um momento, se
perguntou por que o garoto estava ali, a avó tinha concordado em
cuidar dele após o funeral da esposa, o que tinha acontecido àquela
cidade? O que acontecera com ele?
A besta rugia.
Comandava. Dominava.
O homem torto hesitou,
mas seus passos continuavam aproximando-o do garotinho a quem certa
vez ele prometera, ainda no útero materno, proteger, cuidar e amar
para todo o sempre.
Só que ele já não era
mais ele, era?
Só havia uma coisa a
fazer, e ele faria.
E que Deus o perdoasse.
Alguns dias depois,
quando os caras do exército chegaram à casa dos Lequartiers,
depararam-se com a cena dantesca: em um dos quartos, um bebê estava
no berço, corpo roxo e rosto convulsionado e sem vida, com os olhos
arregalados e a boca encerrada em um grito eterno de medo e espanto.
A poucos metros do
berço, jaziam os restos de um corpo putrefato, cuja cabeça fora
estourada e da qual restara muito pouco. A arma ainda estava na mão
direita.
Peritos afirmariam que,
pelo estágio de decomposição (muito mais avançado em um que no
outro) o adulto teria morrido muito meses antes do bebê. O que não
fazia sentido, já que o bebê não conseguiria sobreviver por muitos dias após cessarem seus cuidados. O bebê
estava intocado. Morrera de desidratação. Talvez de medo. Mas não
haviam ferimentos em seu corpo.
Pouco puderam apurar
além disto.
Eram épocas difíceis,
estórias esquisitas como aquela, aconteciam em todos os lugares, e
eles mal tinham tempo de recolher os corpos, quanto mais aprofundarem as investigações.
Os mais religiosos
afirmavam que era o Fim dos Tempos.
Para alguns, certamente
era.
E aí, acharam assustador?
***
E aí, acharam assustador?
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