Já há alguns minutos sentia o peso de um olhar queimando em sua nuca.
Disfarçadamente levantou os olhos de seu copo para o espelho em sua frente. Loiro, pele um tanto avermelhada, obviamente por causa do calor que reinava naquela espelunca barulhenta. O bigodinho de suor típico dos muito brancos, brilhando ali à meia luz lhe deu um arrepio. Essa era a parte que menos gostava. Por que todos eles tinham sempre de ter algum defeito? E por que estes defeitos tinham de ser tão evidentes? Sempre aparecia alguém interessado em noites como essas, mas algumas coisas eram-lhe muito difíceis de ignorar: aquela chuva de caspas manchando uma camisa escura, salsa grudada no dente, cheiro de cigarro e os malfadados bigodes de suor. O homem não era feio. Alto e magro, cabelos curtos e uns olhos claros bastante expressivos. Ele desviara os olhos assim que os dela o encontraram, de um jeito envergonhado que ela achou até atraente. Fixou seu olhar e aguardou, após olhadas furtivas por parte dele seguidas por fugas envergonhadas quando percebia que ela ainda o observava, ele lhe deu um sorriso. Deliberadamente, não correspondeu e dirigiu seu olhar para outro ponto, varrendo o bar com desinteresse. Fazia parte da caça, embora ela não estivesse realmente no espírito de caçar aquela noite, era instintivo. Velhos hábitos, são difíceis de serem mudados. Naquela noite, sentia tanta raiva do mundo que só de pensar em permitir uma aproximação se enchia de repulsa. Avaliou sua situação... não queria ser uma feminista balzaquiana solteira e amarga com alergia a homens, muito pelo contrário, sempre fora calorosa e fogosa em suas relações – que não foram poucas – mas decepção após decepção tiveram o poder de fazê-la ir secando aos poucos, foi se encolhendo, se esvaziando, sentindo os impulsos e instintos esvaindo-se até se encontrar no ponto onde estava atualmente: o de achar que ninguém merecia o melhor de si. Amargamente reviu acontecimentos recentes... Luciano quase a convencera que desta vez seria diferente, conseguiria livrá-a de seu medo, insatisfação e ceticismo por um tempo, levara-a a acreditar que o Amor equilibraria as contas do destino e ela enfim conseguiria deixar de sentir aquela sensação horrível de estar sempre dando mais do que recebendo da vida. Entregara-se a ele com paixão, empenho e um entusiasmo quase infantil, desde o começo.
- Oi, posso me sentar aqui? - a voz dele quebrou o rumo de seus pensamentos.
Quis dizer não. Queria ficar sozinha, pensando em Luciano... curiosamente foi justamente isso que a fez sorrir com educação.
- Claro, à vontade.
- Obrigado. Estava mesmo me sentindo deslocado no meio dessa bagunça toda, e quando a vi aqui, tão sozinha quanto eu, algo me disse que aí estava alguém especial, que valia a pena conhecer.
Blá, blá, blá... uma vozinha dentro de sua cabeça se revoltou. Não queria conhecer ninguém, esse papinho morno de conhecer alguém a irritava enormemente. Era sempre a mesma coisa. O melhor sorriso, o melhor olhar, todo mundo amável, interessado e interessante, como se algum prestasse! Tomou um longo gole de sua bebida e encarou-o. Os olhos dele sorriam abertamente, com ar manso... ele não parecia um tarado e ela resolveu dar uma chance. Afinal, em sua situação atual, ouvir e falar era melhor que o silêncio. O silêncio impregnado de Luciano.
- Vou pedir outra bebida para você – ele disse, empolgado – este aí é bloody mary, não? Quer outro?
- Sim, obrigada. Luciano só de cuecas, mexendo numa coqueteleira um bloody mary improvisado com polpa de tomate, numa noite de domingo, aos pés da cama de onde ela o observava, apaixonada e morrendo de rir...
- Isso é bom? Nunca provei. Fico sempre nas bebidas mais fortes.
Foi uma conversa amena, ele provou de seu bloody mary e disse ser estranho. Ela disse que gostava de coisas estranhas. Ele jogou a cabeça para trás e riu alto. Não era culpa dele que ela estivesse com o cérebro fodido e que cada frase trocada lhe evocava outros momentos, outra pessoa... Luciano em todos os lugares... seus olhos amendoados e espírito confuso, seus arroubos de hilaridade, seus surtos de mau-humor, sua humanidade e seus defeitos, tais quais os dela. Imperfeito na medida certa. Ela quisera casar, e tinha certeza que ele também. Esperara meses, e em uma noite mágica, tivera a certeza que ele a pediria em casamento. Toda emocionada ouviu-o dizer “tenho de lhe dizer algo”. Seu coração se apertou um pouco antes de disparar, tinham acabado de fazer amor e ela ainda sentia o corpo trêmulo e quente. Respirou fundo e preparou-se para o momento mais lindo de sua vida. “Conheci outra pessoa, Marina. Estou te deixando”. Era tudo tão diferente do que estava esperando ouvir que demorou para ela processar o sentindo do que acabara de ser dito. E então a consciência viera, lenta e amarga.
E então houvera choro, houvera gritos... houvera humilhação...
A conversa com o louro - Marcos, ele se chamava - ia longe. Ele monologava sobre suas viagens, seu trabalho.
- Você não fala muito, não é, Marina?
Ela dirigiu-lhe um sorriso encantador.
- Falo sim, é que sua conversa está fascinante. Eu sempre quis viajar também.
- E por que não vai?
É mesmo, por que? Porque era uma doente covarde que estava sempre presa a alguém... mas isso ela não diria, claro. - Boa pergunta! A gente vai deixando... por uma coisa ou outra, e o tempo passa... tem sempre algo mais imediato...
- Você devia tentar. Posso te dar umas dicas se quiser. Pessoalmente, eu adoro a parte de planejar e arranjar todos os detalhes, para quando colocar o pé na estrada estar tudo previamente previsto.
Viagem com Luciano à praia... circundando todo o litoral, sem planejamento algum, sem paradas programadas, somente absorvendo as praias maravilhosas, as pessoas diferentes, sentindo o cheiro do mar, a brisa morna, sem saber onde iriam parar, o vento entrando pela janela do carro, o jeito displicente dele dirigir, auto-confiante e certeiro. Como se sentira segura. E a vista do mirante... estar no topo do mundo, é... ela estivera lá por um tempo, no topo de vários mundos, pena que um deles desmoronara há pouco tempo, Luciano o levara com ele.
E assim foi noite afora. Várias bebidas, depois de um tempo, o papo fluía com certa facilidade, ela se sentia relaxada. O bar fechou. Marcos perguntou se ela queria ir para outro lugar. Acabaram indo para o hotel onde ele estava hospedado. “Pra conversar” ele garantira. Ela estava um pouco tensa a princípio, mas deixou-se envolver, ele estava sendo gentil e divertido, e ela queria muito que sua mente fosse para outro lugar, um lugar onde Luciano não estivesse marcado. Eles transaram, depois do sexo, deitados, ela com a cabeça no peito dele, sentindo-se saciada e aquecida, pensando que talvez ela fosse mesmo viajar... talvez fosse com ele, soltou um suspiro feliz.
- Quem me dera minha esposa fizesse essas coisas! Você foi ótima! - ouviu-o dizer, dando-lhe um tapa brincalhão na bunda. - Quer que eu chame um taxi?
Luciano dizendo “Nunca daria certo entre nós. Não posso lhe dar o que você precisa.” Maldito, nem ao menos se preocupou em descobrir o que ela precisava, em tentar! Sorrindo mansamente dirigiu-se ao banheiro, tomou uma ducha, acalmou o espírito e na volta para o quarto, pegou as taças e o vinho que tinha ficado intocado na mesinha. Estendeu-lhe uma taça, e conversando futilmente sobre nem sabia o que, observou-o tomar todo o vinho. Ele tinha mesmo belos olhos... mas aquele bigodinho de suor... - seu estômago se revoltou – será que era permanente? Sentiu nojo enquanto falava e falava, até que viu-o cambalear por uns segundos e, dois minutos depois ele jazia num estado de semi-inconsciência. Ela abriu a sua mochila, tirou um cutelo e decepou-lhe o pau. Ele abriu os olhos, em espanto e dor, mas não emitiu um som, nem se moveu. Estava paralisado, lágrimas escorreram e ele desmaiou novamente. Ela aplicou-lhe uma injeção, guardou aquela coisa mole e nojenta, ensanguentada em um pote que tirou da mochila, cheio de um líquido translúcido, limpou-se, foi embora.
De volta ao apartamento escuro... vazio. Pousou a mochila no sofá, largou as chaves do carro, pisou descalça no tapete felpudo e suspirou. Seu gato de um pulo saiu do canto escuro da sala para o sofá e começou a cheirar a mochila. Ela tentou chamá-lo para um afago, mas ele não veio. Abriu a mochila, tirou o pote e foi para o pequeno cômodo do apartamento, misto de escritório e quarto de bagunça. Dirigiu-se a uma prateleira no canto e pousou o pote lado a lado a outros cinco, um tanto empoeirados. Por alguns instantes ficou olhando, e tirou um outro, mais escondido, emparelhando-o com os outros. Para este não gostava de olhar, e várias vezes empurrava-o para trás, escondendo-o de suas vistas. O órgão ali não fora bem conservado, afinal fora o seu primeiro! Tantos anos atrás... jazia meio mumificado e escurecido. Com o passar do tempo ela fora aprimorando as técnicas, e os outros provavelmente durariam para sempre...
Assim como as lembranças. Sete membros mutilados, sete homens para quem dera o melhor de si, e que acharam que o melhor que podia dar a ela era o pau, ela somente se sentira no direito de tomá-los para si. Cada corpo daqueles, lhe fizera uma promessa, ela somente a cobrara, uma a uma.
Com um sorriso satisfeito, jogou-se na cama, nua. Estava exausta...
Antes de pegar no sono, pensou distraída... como era mesmo o nome do cara do bigodinho de suor?